terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O interesse público como causa legítima de inexecução das sentenças dos tribunais administrativos

O interesse público como causa legítima de inexecução das sentenças dos tribunais administrativos[1]

O Código de Processo nos Tribunais Administrativos dispõe, no seu artigo 158.º a obrigatoriedade das decisões judiciais dos tribunais administrativos para todas as entidades públicas e privadas.

O incumprimento injustificado desta disposição importa responsabilidade civil, quer da Administração quer das pessoas que nela desempenhem funções (art. 159.º, n.º 1, al. a)); e responsabilidade disciplinar dessas mesmas pessoas (art. 159.º, n.º 1, al. b)). A inexecução pode ser cominada com o crime de desobediência quando, após notificação da Administração, o órgão competente manifeste a inequívoca intenção de não dar execução à sentença e não invoque a existência de causa legítima de inexecução (art. 159.º, n.º 2, al. a)); ou não proceda à execução nos termos que a sentença tenha estabelecido ou que o tribunal defina no processo executivo (art. 159.º, n.º 2, al. b)).

A obrigatoriedade das decisões jurídico-administrativas pode, portanto, ser travada por justificação, em face de acordo do interessado ou declaração judicial, caso exista causa legítima (art 159.º, n.º 1, proémio).

O regime concreto da legitimidade das causas de inexecução depende da natureza da execução, conforme se trate de execução para prestação de factos ou de coisas, execução para pagamento de quantia certa ou execução de sentença de anulação de acto administrativo.

Nas execuções para prestação de factos ou de coisas, tais causas legítimas só poderão ser a impossibilidade absoluta de executar, ou o grave prejuízo para o interesse público decorrente da execução (art. 163.º, n.º 1) e deve ser fundamentada e notificada ao interessado no prazo previsto para a execução espontânea (três meses, cfr. art. 162.º, n.º 1), só podendo reportar-se a circunstâncias supervenientes ou que a Administração não estivesse em condições de invocar no momento oportuno do processo declarativo (art. 163.º, n.º 3).

Naturalmente, que tal invocação poderá ser arguida, permitindo-se ao interessado pedir a respectiva execução (art. 164.º, n.º 1), devendo deduzir as razões da sua discordância (art. 164.º, n.º 5). Por sua vez, pode a Administração deduzir oposição à execução, nos termos do artigo 165.º. Havendo, na oposição, a invocação de causa legítima de inexecução que o tribunal julgue procedente, deve ordenar à Admnistração e ao particular que acordem o montante da indemnização (art. 166.º, n.º 1), fixando esse valor no caso desse acordo não ser estabelecido no prazo de 20 dias, conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 166.º, n.º 3 e do artigo 116.º, n.º 1). A indemnização também é admitida nos casos em que o interessado concorda com a invocação da causa legítima de inexecução (art. 164.º, n.º 6).

As execuções para pagamento de quantia certa não admitem a inexecução, salvo a oposição fundada na invocação de facto superveniente, modificativo ou extintivo da obrigação (art. 171.º, n.º 1), pois a inexistência de verba ou cabimento orçamental não constituem fundamento de oposição à execução (art. 171.º, n.º 2).

A execução de sentença de anulação de acto administrativo deve ser cumprida no prazo de três meses (artigo 175.º, n.º 1), sendo admissível a invocação da impossibilidade absoluta ou do grave prejuízo para o interesse público na execução da sentença (art. 163.º ex vi art. 175.º, n.º 2). Ao contrário das execuções para a prestação de factos ou de coisas, não se exige nas sentenças de anulação de actos administrativos, que a Administração apenas invoque circunstâncias supervenientes (art. 175.º, nº 2, parte final), estando-lhe porém vedada a invocação da existência de causa legítima de inexecução, no caso da sentença consistir no pagamento de uma quantia pecuniária (art. 175.º, n.º 3).

O interessado pode, no prazo de seis meses (art. 176.º, n.º 2) deduzir petição de execução (art. 176.º, n.º 1), que é apensada aos autos em que foi proferida a sentença de anulação (art. 176.º, nº 2), devendo especificar os actos e operações em que considera que a execução deve consistir, podendo, para o efeito, pedir a condenação da Administração ao pagamento de quantias pecunisárias, à entrega de coisas, à prestação de factos ou à prática de actos administrativos (art. 176.º, n.º 3), pedir a declaração de nulidade dos actos desconformes com a sentença, bem como a anulação daqueles que mantenham, sem fundamento válido, a situação constituída pelo acto anulado (art. 176.º, n.º 5) e podendo fixar um prazo para cumprimento e a imposição de uma sanção pecuniária compulsória (art. 176.º, n.º 4).

Nos casos em que a Administração tenha invocado causa legítima de inexecução e o particular não concordar, deve o interessado deduzir na petição as razões da sua discordância (art. 176.º, n.º 6). A Administração, bem como os contra-interessados a quem a satisfação da pretensão possa prejudicar, podem contestar a petição de execução (art. 177.º, n.º 1). Nos casos em que haja invocação de causa legítima de inexecução e o interessado concorde, quer ela lhe tenha sido notificada ou invocada na contestação, há lugar a indemnização, fixada nos mesmos termos que para as execuções de prestaão de coisa ou de facto (art. 176.º, n.º 7, 177.º, n.º 3 e 166.º ex vi 178.º, n.º 2).

O tribunal dispõe de amplos poderes de decisão, respeitado o espaço de valoração próprio da função administrativa, podendo especificar o conteúdo dos actos e operações a adoptar para dar execução à sentença e identificar o órgão ou órgãos responsáveis pela sua adopção, fixando o prazo e operações que tais actos e operações devem ser praticados (art. 179.º, n.º 1), bem como pode ainda declara a nulidade dos actos desconformes com a sentença e anular os que mantenham, sem fundamento válido, a siutação ilegal (art. 179.º, n.º 2) ou condenar os titulares dos órgãos incumbidos da execução ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória (art. 179.º, n.º 3).

Em suma, em qualquer dos casos, a invocação pela Administração de causas legítimas de execução só é admissível em face do acordo do interessado ou do julgamento de procedência pelo juíz[2].

Semelhante fenómeno de invocação da impossibilidade absoluta ou de grave (rectius, excepcional) prejuízo para o interesse público pode, desde logo, condicionar a satisfação dos interesses dos autores, ainda em processo de declaração, conforme resulta do artigo 45.º, podendo, ainda nestes casos, a condenação no pedido poder ser substituída por indemnização. Para Vieira de Andrade, trata-se “de um conhecimento preventivo de causas legítimas de inexecução”[3]. Naturalmente, a não procedência da invocação em processo declarativo não obstará à sua invocação em face da execução da sentença[4], isto é, o julgamento de procedência da invocação de uma impossibilidade absoluta ou de excepcional prejuízo para o interesse público não faz caso julgado material.

A impossibilidade absoluta poderá ser configurada como impossibilidade física ou legal[5]. O interesse público é mais difícil de delimitar. Freitas do Amaral propõe uma aproximação da noção de interesse público como interesse colectivo, isto é, “o interesse geral de uma determinada comunidade, o bem-comum”[6] ou, mais restritamente e na esteira de Jean Rivero, caracteriza “o interesse público como sendo o que representa a esfera das necessidades a que a iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade na sua totalidade e para cada um dos seus membros”[7]. Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos também fazem apelo às “necessidades colectivas em cada momento seleccionadas, mediante prévia opção constitucional e legislativa, como desígnios da colectividade política”[8]. Wolff/Bachof/Stober, distinguem interesses públicos gerais e especiais, sendo os primeiros “os interesses de uma comunidade estadual ou de outra comunidade pública, como unidade de acção ou de ordenação dos seus membros”[9] e os segundos os “interesses colectivos de determinadas unidades intra-estaduais, locias ou funcionais”[10]. Reconhecendo que a sua noção ampla fora sujeita a críticas que a consideravam uma “fórmula vazia”, os autores sustentam que ela é “o princípio abstracto em que se apoia toda a fundamentação e toda a produção jurídica”[11]. Esta distinção também é feita por Rogério Soares, embora sob a designação de interesses públicos primários e interesses públicos secundários[12].

Acompanhamos, então, Freitas do Amaral, quando retira consequências práticas do princípio da prossecução do interesse público, ínsito no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa:

“1 – É a lei que define os interesses públicos a cargo da Administração: não pode ser a Administração a defini-los, salvo se a lei habilitar para o efeito, deferindo-lhe competência para concretizar certo tipo de conceitos indeterminados;

2 – A noção de interesse público é uma noção de conteúdo variável: o que ontem foi considerado conforme ao interesse público pode hoje ser-lhe contrário, e o que hoje é tido por inconveniente pode amanhã ser considerado vantajoso. Não é possível definir o interesse público de uma forma rígida e inflexível, ne varietur;

3 - Definido o interesse público pela lei, a sua prossecução pela Administração é obrigatória;

4 – O interesse público delimita a capacidade jurídica das pessoas colectivas públicas e a competência dos respectivos órgãos: é o chamado princípio da especialidade também aplicável às pessoas colectivias públicas;

5 – Só o interesse público definido por lei pode constituir motivo principalmente determinante de qualquer acto da Administração. Assim, se um órgão da Administração praticar um acto que não tenha por motivo principalmente determinante o interesse público posto por lei a seu cargo, esse acto estará viciado por desvio de poder, e por isso será um acto ilegal, como tal anulável contenciosamente;

6 – A prossecução de interesses privados em vez do interesse público, por parte de qualquer órgão ou agente administrativo no exercício das suas funções, constitui corrupção, e como tal acarreta todo um conjunto de sanções, quer administrativas quer penais, para quem assim proceder;

7 – A obrigação de prosseguir o interesse público exige da Administração pública que adopte em relação a cada caso concreto as melhores soluções possíveis, do ponto de vista administrativo (técnico e financeiro): é o chamado dever de boa administração”[13].

Naturalmente que estes corolários valerão também para a invocação do interesse público como causa legítima de inexecução da sentença. A invocação tem de fundar-se na consagração constitucional ou legal do interesse que se alega. Não pode a Administração alegar uma “mitologia” do interesse público como panaceia para todas as acções em que se verifique que foi por ela violada a lei. Só desta maneira se consegue compatibilizar o princípio da prossecução do interesse público com o princípio da legalidade.

[1] Todos os artigo sem indicação da fonte pertencem ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
[2] No mesmo sentido, José Carlos Vieira de Andrade, «A Justiça Administrativa (Lições)», 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, página 388.
[3] José Carlos Vieira de Andrade, «A Justiça Administrativa ...», p. 390.
[4] Ibidem.
[5] No mesmo sentido, José Carlos Vieira de Andrade, «A Justiça Administrativa...», p. 388.
[6] Diogo Freitas do Amaral, «Curso de Direito Administrativo – Vol. II», 1.ª ed., 8.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2008, página 34 (itálicos no original).
[7] Ibidem.
[8] Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, «Direito Administrativo Geral – Tomo I, Introdução e Princípios Fundamentais», 3.ª ed., Publicações D. Quixote, Lisboa, 2008, página 41.
[9] Hans J. Wolff/Otto Bachof/Rolf Stober, «Direito Administrativo – vol. I», 11.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, página 426.
[10] Ibidem, p. 428.
[11] Ibidem, p. 427.
[12] Rogério Soares, «Interesse público, legalidade e mérito», policopiado, Coimbra, 1955, página 99.
[13] Diogo Freitas do Amaral, «Curso de Direito Administrativo II...», pP. 36 e seguintes (itálicos no original).

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