quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Como, finalmente, já consigo publicar no blogue aproveito para deixar o comentário que fiz à primeira proposta do Prof. Vasco Pereira da Silva e que, anteriormente, já tinha enviado para o Dr.

Perante a proposta de análise da evolução histórica dos modelos francês e anglo-saxónico da Justiça Administrativa, bem como das semelhanças e diferenças existentes na actualidade vou tecer um comentário onde procuro identificar os traços característicos de um e de outro modelo de justiça administrativa.

Começarei por fazer uma caracterização geral e posteriormente uma apreciação mais individualizada ainda que por vezes intercalando os sistemas de matriz francês e inglês.

O Sistema Administrativo tradicional assentava na ausência de separação de poderes e na inexistência de um Estado de Direito. Com as revoluções liberais surgiram os Sistemas Administrativos Modernos que deram origem a dois subsistemas: o sistema de tipo francês e o sistema de tipo britânico. Tiveram experiências históricas absolutamente diferentes, na linguagem do Prof. VPS, o primeiro irá passar por uma “infância difícil”, enquanto o segundo, pelo contrário, irá ter uma “infância feliz”.

No entanto, importa salvaguardar que ambos os países se dotaram da mais moderna instituição de protecção dos particulares face à Administração Pública.

Modelo francês

O sistema de tipo francês tem as suas raízes históricas em França. Foi com a revolução francesa, de 1789, e o princípio da separação de poderes que dela emanou que surge o máxima “ julgar a Administração ainda é administrar”. Daqui podemos inferir que foi retirada aos tribunais comuns a resolução de litígios decorrentes de situações jurídico-administrativas. A Administração foi separada da Justiça. Entendia-se que se os tribunais comuns julgassem a Administração estavam a usufruir de um poder que não era o seu. Esta era uma interpretação errada do princípio da separação de poderes, mas da qual resultou um sistema em que o administrador era juiz e o juiz era administrador.

Estávamos perante um sistema centralizado, o território dividido em diversos "départements", os municípios perderam autonomia administrativa e financeira, as autoridades locais eram apenas instrumentos administrativos do poder central. Esta fase foi designada como a fase do pecado original pelo Prof. Pereira da Silva.

Foram, também, definidos direitos subjectivos públicos invocáveis pelo cidadão contra o Estado, tendo sido construído um aparelho administrativo unitário. Existia um só Sistema tanto para o Estado como para os particulares. Os litígios que, eventualmente, surgissem entre as entidades administrativas e os particulares eram da competência de tribunais específicos, os tribunais administrativos. Tal conduz a uma proibição dos tribunais comuns julgarem os litígios administrativos.

A Administração Pública dispunha de poderes de autoridade e privilégios por exercer funções de interesse público e aquela podia sobrepor-se aos interesses dos particulares.

Isto levou à criação de desigualdades que beneficiavam a Administração em detrimento dos particulares.

Verificava-se o privilégio da execução prévia, característica mais marcante deste sistema, que permitia à Administração efectuar as suas decisões por autoridade própria, utilizando meios coactivos caso fosse necessário.

Quanto às garantias jurídicas dos particulares, elas existiam, designadamente contra as ilegalidades e abusos da Administração Pública, gozando os Tribunais comuns de plena jurisdição face à Administração. Contudo, estas garantias jurídicas contra o abuso da Administração eram efectivadas através de tribunais administrativos e não por tribunais comuns.

O modelo francês ficou, também, condenado pela criação de um tribunal privativo para a Administração ou mesmo a criação de um ramo de direito destinado a afirmar privilégios exorbitantes dos poderes públicos.

Todavia, com a transição do Estado Liberal para o Estado Social de Direito aumentaram as relações entre os particulares e o Estado, ficando submetidas à fiscalização dos tribunais judiciais. O Prof. VPS intitula este estádio como a fase do baptismo.

O processo de transformação dos órgãos de controlo da administração em tribunais administrativos foi moroso e gradativo, bem como, marcado por sucessivas reformas legislativas.

As mudanças essenciais estavam relacionadas com o surgimento de duas instâncias e a jurisdicionalização plena de cada uma delas. Assim, os “órgãos administrativos especiais” foram transformados em verdadeiros tribunais que seriam compostos por tribunais autónomos e independentes que controlavam a Administração. Com isto o modelo francês foi perdendo o seu carácter de absoluta centralização.

Por último, a etapa que o Prof. VPS denomina de “fase da confirmação”. Verifica-se uma acentuada dimensão jurisdicional com plenitude de poderes assim como a afirmação da natureza subjectiva em que se tutela os direitos das partes, quer da administração como dos particulares. Esta etapa é dividida por dois sub-períodos. O primeiro caracteriza-se pela Constitucionalização do Contencioso Administrativo que passa a ser praticado por verdadeiros tribunais de modo a garantir uma protecção efectiva dos particulares. A sua consagração ocorreu ao nível da lei fundamental admitindo que a administração tem que ser julgada por tribunais, de uma outra jurisdição, e não por órgãos que estejam dependentes da administração. Aceitando, ainda, que os particulares gozam do direito a esses tribunais para protecção das suas posições subjectivas perante a administração.

Modelo britânico

Quanto ao sistema britânico há a referir que existia um conceito aproximado ao de Estado, em concreto de Coroa, que se apelidava como a própria organização administrativa. Daqui resultava uma relação de independência entre a Coroa e o Parlamento o que possibilitava a criação de tribunais como entidades autónomas.

Ora, no ano de 1688, este panorama administrativo viria a ser alterado pela Grande Revolução. Passaria a ser conhecido como um sistema de administração judiciária caracterizando-se por uma verdadeira separação de poderes, onde a Coroa/Rei foi impedido de resolver questões de natureza contenciosa. Os tribunais comuns gozavam de plena jurisdição face á Administração Pública. É desta característica que se retira a essência do sistema britânico, o papel preponderante exercido pelos tribunais vigorando um Princípio da Separação de Poderes segundo o qual cada poder era autónomo e independente, limitados reciprocamente, mas sem que tal significasse a sua integração em qualquer entidade superior. Verificava-se a submissão da Administração aos tribunais e às regras de “direito comum”.
Os juízes ganharam grande independência face ao monarca. Este deixou de ter a discricionariedade e não mais pôde actuar na medida das suas anteriores competências.
Quanto aos cidadãos britânicos, para eles, foram consagrados direitos, liberdades e garantias através do Bill of Rights no ano de 1689. Os cidadãos eram mais e melhor protegidos contra os excessos cometidos pela Administração Pública.

A determinação de que o Direito Comum seria aplicável a todos os ingleses, rule of law, assentava na igualdade de todos perante a lei e, na sujeição da Administração ao direito comum definido e aplicado pelos tribunais comuns. A administração não dispunha de qualquer tipo de privilégios, devido à anterior regra do direito comum igual para todos os cidadãos e não existia por isso necessidade de quaisquer tribunais especiais, isto é, encontrava-se sujeita aos tribunais comuns não podendo executar as suas decisões por autoridade própria e não possuí poder coactivo face às suas decisões perante os particulares. Estamos perante uma subordinação da Administração ao direito comum ou não existência de privilégios ou da autoridade pública.

Em suma, praticava-se a distinção entre a Administração Central e a Administração local, em que as autarquias locais gozavam de uma grande autonomia, sendo encaradas como verdadeiros governos locais e a Administração ficou sujeita ao controlo jurisdicional dos Tribunais Comuns (courts of law).
Por seu turno, o Rei ficou subordinado ao direito consuetudinário resultante de costumes sancionados pelos Tribunais (common law).

A transição do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, fase do baptismo no entendimento do Sr. Prof. Pereira da Silva, vai levar ao aparecimento de muitas normas administrativas, em virtude da intervenção dos poderes públicos na vida económica, social e cultural.

Existiam alguns problemas de concretização da teoria na prática pois afirmava-se que o controlo da administração cabia num poder judicial independente onde o juiz gozava de plenos poderes mas na prática a questão não era tão simples já que estava sujeita a certas limitações, das quais se destacavam o facto de o juiz autolimitar a sua apreciação no domínio do poder discricionário que tornava menos efectivo o controlo judicial. Também, a existência de diferentes regras processuais para os litígios administrativos constituía um limite pois para controlar a maior parte das decisões administrativas não era possível através de meios processuais genéricos mas específicos que não eram utilizados pelos particulares porque não podiam ser accionados contra a Coroa. Dada esta discrepância entre teoria e prática surgem “entidades administrativas especiais" cuja função é para além das tarefas administrativas também a de fiscalizar a administração. Assim, para além dos tribunais comuns também os órgãos administrativos especiais controlavam a administração cabendo a última palavra ao tribunal. O sistema britânico que era descentralizado tornou-se deste modo mais centralizado.

Relativamente à “fase da confirmação”, assim definida pelo Prof. VPS, quanto ao primeiro sub-período iniciou-se pela consagração de regras e princípios próprios e também adquiriu, posteriormente, dimensão constitucional. A constitucionalização é acompanhada por uma progressiva especialização do contencioso administrativo a três níveis. A criação de um tribunal especializado em matéria administrativa, desaparecendo o principal aspecto que caracterizava o modelo britânico. A segunda mudança prendeu-se com o estabelecimento de regras processuais específicas para o julgamento de litígios administrativos, assim como a concentração num meio processual especial dos poderes de controlo da administração pelo juiz. Por último, uma verificou-se uma reorganização das garantias administrativas e contenciosas para aumentar a eficácia do sistema através da possibilidade de impugnação perante um tribunal das decisões dos órgãos administrativos especiais.

O segundo sub- período é o da Europeização que se caracteriza pela integração vertical, ou seja, por surgirem fontes europeias relevantes no Contencioso Administrativo. Podemos mencionar como exemplos a área da contratação pública ou das providências cautelares. Sobreveio, também, a integração horizontal que se caracterizava pela convergência cada vez mais acentuada das legislações nacionais aquando da existência reformas do Contencioso Administrativo.
Em suma, no seguimento do que diz o Prof. VPS e em jeito de conclusão, pode afirmar-se a existência de um Direito do Processo Administrativo Europeu ou Comum tanto de fonte legislativa como jurisprudencial, bem como a convergência dos sistemas de contencioso nacionais, nomeadamente os dois sistemas já analisados, de matriz francesa e britânico.

Actualidade

Com o decorrer do séc.XX a doutrina crê que ocorreram alterações que fomentaram uma aproximação entre os sistemas francês e britânico, nomeadamente em relação à maior centralização administrativa no sistema britânico que se contrapõe á perda do carácter de total centralização na administração francesa. Em Inglaterra surgiram inúmeras leis administrativas e emergiram uma espécie de tribunais administrativos com um poder de execução limitado mas real.

Em França foi necessário actuar em diversos domínios sob a reserva do direito privado. Algumas das decisões da Administração só vêm ser executadas se um tribunal administrativo a pedido de um particular interessado a tal se opuser. Apesar disto, podemos afirmar que existem tribunais administrativos para julgarem as relações entre administração e particulares e já não existe um défice de tutela judicial efectiva. Não se podendo referir a existência de poderes exorbitantes que não resultem da lei e que permitam a auto execução de decisões de autoridade própria. Os meios processuais garantem uma verdadeira tutela judicial, ou seja, a existência de uma separação entre tribunais administrativos e tribunais comuns é compatível com o princípio da tutela judicial efectiva.

Todavia, embora tenha ocorrido uma certa aproximação entre os dois sistemas, existem dissemelhanças claras, nomeadamente no facto de serem os tribunais comuns, em Inglaterra, a proceder à fiscalização da Administração Pública onde se verifica unidade de jurisdição. Já em França a fiscalização corre nos tribunais administrativos, verificando-se dualidade de jurisdição.

O sistema francês vigora actualmente em quase todos os países continentais da Europa Ocidental, incluindo Portugal (1832) enquanto o britânico vigora na generalidade dos países anglo-saxónicos (ex: EUA, países da América Latina).

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