quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Legitimidade do particular e da administração no Contencioso Administrativo

Podemos afirmar que o legislador já demonstrou que os processos do Contencioso Administrativo pertencem às partes, e a elas, e apenas a elas, cabe a legitimidade processual seja activa ou passiva.

Iniciando esta exposição pelas raízes históricas do Contencioso Administrativo, no modelo francês, nem os particulares nem a Administração eram considerados como partes, apenas, eram entendidos como colaboradores do Tribunal. Não era aceitável reconhecer aos particulares direitos subjectivos face à Administração e se ao particular se negava o estatuto de parte, também a administração não era parte no processo, mas sim “autoridade recorrida”, cuja principal função era auxiliar o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público, o que denota a promiscuidade existente entre a Administração e a Justiça

Com a CRP de 1976 esta negação da qualidade de parte foi afastada e consagrou o Contencioso Administrativo no Poder Judicial. Assim, num contencioso plenamente jurisdicionalizado e de natureza subjectiva tanto o particular como a Administração são considerados partes que defendem as suas posições.

Quanto ao CPTA consagra explicitamente a regra de que os particulares e a Administração são partes nos processos de cariz administrativo. O princípio da igualdade efectiva da participação processual, consagrada no art. 6º, afasta completamente o modelo objectivista que anteriormente subsistia. Ainda no âmbito deste princípio é relevante demonstrar que além da possibilidade de intervenção no processo existe a possibilidade de os sujeitos processuais poderem ser sancionados pelo tribunal por motivo de litigância de má-fé. As partes são responsabilizadas pelo resultado do processo, através do estabelecimento de uma condenação ao pagamento de custas. Releva a cooperação entre as partes e os respectivos mandatários com os magistrados visando-se uma adequada resolução de litígios, art. 8º nº1, e boa-fé entre as partes evitando diligências e dilações inúteis art. 8º nº2.

Pelo exposto se verifica, segundo a concepção subjectiva, que o particular e a Administração são partes que, perante um juiz, defendem os seus interesses. Do lado do particular a lesão de um direito, do lado da administração a defesa da legalidade e do interesse público. Sendo um processo de partes ambos dispõem de poderes e deveres processuais destinados à tutela efectiva dos seus interesses. Igualmente, podemos afirmar que a questão da legitimidade é inseparável da questão da qualidade de parte, o CPTA evidencia o processo administrativo como um processo de partes nos termos dos arts. 9º e seguintes.

Para concretização das consequências práticas do exposto e tomando como referência a temática do recurso de anulação que foi, no passado, encarado como uma auto-verificação de legalidade e a participação em juízo não pressupunha a afirmação de nenhum direito subjectivo lesado mas sim da mera existência de um interesse de facto do particular, tal interesse funcionava como condição de legitimidade revelando-se substituto de uma posição substantiva de interesse que se pretendia aniquilar. Incompatível com este Modelo Clássico é o regime jurídico do CPTA que estabelece que a legitimidade provém da alegação da posição de parte na relação material controvertida, conforme o art. 9º. Confere-se legitimidade pela posição dos sujeitos e pela alegação de direitos e deveres recíprocos, assegurando uma ligação entre a relação material substantiva e a relação processual para que os sujeitos sejam sujeitos efectivos da relação material. O mesmo é dizer que a legitimidade como pressuposto processual visa assegurar a coincidência entre os sujeitos processuais e os titulares efectivos da relação material controvertida.

Quanto ao nº1 do art. 9º pressupõe a titularidade de posições substantivas de vantagem no âmbito da relação jurídica administrativa.
Quanto ao nº 2 do mesmo preceito não se justifica realizar a distinção entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos. O Prof. VPS defende a inexistência de quaisquer diferenças referentes à natureza destes conceitos, constatando que, no limite, elas existirão ao nível do conteúdo, apenas. Deste modo, consideram-se inaceitáveis, num Estado de Direito, os pressupostos que negaram no passado ao particular a qualidade de sujeito nas relações administrativas, assim como, também, discorda de perspectivas teóricas que aludem a "direitos subjectivos de primeira categoria" e "direitos de segunda”. No que concerne a aspectos meramente formais é unânime entre a doutrina que a lei possa atribuir um direito subjectivo através de uma norma jurídica que o qualifique como posição jurídica de vantagem, como um direito subjectivo.

Também existe um dever na administração quanto ao interesse do particular, delimita-se de forma negativa a posição substantiva de vantagem pela norma jurídica.
Contrariamente à função subjectiva inerente ao disposto no nº 1 o nº 2 evidencia uma função objectiva no seio do Contencioso Administrativo, pois permite tutelar a legalidade e o interesse público considerando-se sujeitos activos do Contencioso Administrativo, também, o actor público e o actor popular. No primeiro caso, o Contencioso Administrativo desempenha uma função predominantemente subjectiva, de protecção dos direitos dos particulares, assumindo mesmo a natureza de direito fundamental, art. 268º nº 4 da CRP. No segundo caso, referente à acção pública e à acção popular, o Contencioso Administrativo adquire uma função sobretudo objectiva da tutela da legalidade e do interesse público.
Em relação à legitimidade passiva o critério é, também, o da relação material controvertida, que entende como partes as entidades públicas, os indivíduos ou as pessoas colectivas privadas, sujeitos às obrigações e deveres simétricos dos direitos subjectivos alegados pelo autor, art. 10 nº 1, CPTA. Outro aspecto que revela que a Administração tem que ser sempre uma parte recai no facto de nas acções relativas a actos ou omissões administrativas a parte demandada ser ou uma pessoa colectiva de direito público ou, tratando-se do Estado, o ministério que englobe os órgãos face aos quais seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar actos ou observar determinados comportamentos, art. 10º nº 2 do CPTA, que afasta
definitivamente a ideia objectivista de que a administração não é parte no processo.

Talvez, agora e nestes moldes, possamos afirmar que o actual contencioso administrativo permite a realização da Justiça Administrativa na sua verdadeira acepção.

Importa salvaguardar que o Prof. VPS entende que o legislador, relativamente ao acolhimento da pessoa colectiva pública como sujeito processual paradigmático, realizou uma escolha menos apropriada. Fundamenta esta posição alegando que o conceito de pessoa colectiva pública não faz sentido enquanto único sujeito de imputação de condutas administrativas, em razão da complexidade da organização administrativa e da natureza versátil das relações jurídicas multilaterais.

Atendendo a algumas transformações relevantes da Administração Pública no quadro do Estado Pós-social, nomeadamente, a riqueza da diversidade inerente aqueles que levam a cabo a função administrativa, em que se verifica uma pluralidade de administrações; a multiplicação de comportamentos decisórios autónomos, que conduziu a um descentramento da actividade administrativa e deixou de ser exercida meramente em torno do Governo; a superação do dogma da impermeabilidade da pessoa jurídica; o afastamento da teoria das "relações especiais de poder" que se traduziria no facto de aquilo que ocorrer no interior de uma pessoa colectiva também possa possuir natureza jurídica, exaltando a submissão dessas relações à lei e aos direitos fundamentais. Considerando a tendência para autonomizar o papel das autoridades administrativas como sujeitos de relações jurídicas surgem distintos posicionamentos.

Uma orientação radical, oriunda da doutrina italiana, revela-se defensora da intitulada "dessubjectivação" da organização administrativa, que se traduziria num abandono dos conceitos tradicionais de pessoa colectiva e de órgão, assim como a autonomização das autoridades públicas sob a denominação de serviços, passando estes a ser os únicos sujeitos administrativos.

Pelo contrário, uma orientação de matriz alemã, ampara a relativização do conceito de pessoa colectiva, remetendo para uma noção de capacidade jurídica de que são dotados os órgãos públicos, tornando-os efectivos sujeitos das relações jurídicas administrativas, sem qualquer dispensa formal do conceito de pessoa colectiva pública. Quanto ao ordenamento jurídico português colhe o entendimento de encarar as autoridades administrativas como sujeitos de direito, susceptíveis de titularidade de posições jurídicas activas e passivas. Assim, as normas constitucionais referem-se tanto a pessoas colectivas como a órgãos administrativos de acordo com o disposto nos artigos 266º e ss da CRP. Neste seguimento o Prof. VPS conclui que no nosso ordenamento se tem relativizado o conceito de personalidade jurídica das entidades públicas, dando-se primazia à actuação dos seus órgãos. As autoridades administrativas são "sujeitos funcionais" de relações jurídicas com capacidade jurídica própria, o que se traduz na aceitação de relações inter-orgânicas.

Todavia, o Prof. aponta uma excepção relativamente ao Estado considerando que os respectivos actos devem ser imputados aos ministérios em que se integram os órgãos em causa de acordo com o art. 10 nºs 2 e 3 do CPTA. Mas acaba por reconhece que a solução do legislador é, de um ponto de vista teórico, a mais adequada.

Para finalizar importa tratar, ainda, uma outra questão relevante que incide em determinar se num processo intentado pelo autor contra determinada autoridade administrativa devem também ser chamados a juízo os demais sujeitos da relação multilateral. O legislador na reforma do Contencioso Administrativo revelando-se consciente da necessidade de considerar os interesses de todos os intervenientes das relações multilaterais, considerou-os sujeitos processuais nos termos do art. 12º, referente à coligação, do art. 48º quanto aos processos em massa, do art. 59º relativo aos contra-interessados. Prevê-se a possibilidade de litisconsórcio voluntário, quer em caso de coligação de autores contra um ou vários demandados quer na situação de existirem várias causas de pedir mas os pedidos possuírem idênticos fundamentos de facto e de direito.

Quanto aos processos em massa, verifica-se que a protecção dos sujeitos intervenientes é a solução mais eficiente na óptica do funcionamento dos tribunais, não prejudicando a protecção individual.

No que respeita à denominação "contra-interessados", o Prof. VPS manifesta-se pela insatisfação da solução inerente à mesma e entende os contra-interessados como sujeitos principais da relação jurídica multilateral, enquanto titulares de posições jurídicas de vantagem, conexas com as da Administração, intervindo nesses moldes no Processo Administrativo.

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