quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O incumprimento do dever de decidir

A propósito da matéria recentemente desenvolvida nas aulas de Contencioso Administrativo e Tributário (nomeadamente as aulas teóricas de 11 e 16 de Novembro e as aulas práticas de 16 e 17 de Novembro) quero aproveitar este espaço para relembrar o estudo, da autoria do Professor Sérvulo Correia, publicado há exactamente 5 anos no nº 54 da revista “Cadernos de Justiça Administrativa”, sobre a acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, com o título que acima reafirmamos: “O incumprimento do dever de decidir”.

A entrada em vigor, a 1 de Janeiro de 2004, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), é o evento transportador desta “revolução” na forma como são tutelados os direitos dos particulares na sua relação com a Administração Pública.

Saliente-se, neste âmbito, o contraste existente entre a anterior situação de expectativa do particular quanto à pronúncia e decisão por parte da Administração e o que passou a ser o direito que tem a pronúncia por dever de pronúncia e decisão da Administração.

A expectativa podia resultar em “nada”, ou melhor, como afirma o artº 109º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), num indeferimento tácito, presunção legal de acto administrativo de indeferimento por omissão de acto expresso e decisório, ou seja, um “não acto” que passa a ser acto. Com o CPTA esta omissão deixa de ser um acto presumido e passa a corresponder a inércia da Administração que, por incumprimento do dever de decidir é por isso mesmo também passível de impugnação contenciosa através de acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido.

Numa abordagem monista desta realidade, o que parece também resultar da lei (ver artº 67º CPTA p. ex.), o Prof. Sérvulo Correia equilibra a sua análise entre o dever de decidir (único) e o incumprimento, quer este se dê por omissão quer por recusa e quer seja recusa de apreciação ou a recusa se dê por indeferimento.

Sem qualquer pretensão quanto a um tratamento exaustivo deste estudo nem do tema sobre o qual faz luz, creio no entanto ser importante realçar alguns aspectos nele contidos certamente auxiliares para a sua compreensão, pelo que aqui ficam alguns tópicos.

Enquadramento fundamental

1. O dever de pronúncia

Consagrado no artº 52º, nº 1 in fine, da Constituição (CRP) e no artº 9º, nº 1 do CPA sob a epígrafe “Princípio da decisão”, reflectem estes normativos o direito dos cidadãos à apresentação de petições, reclamações, representações e queixas, bem como o direito a obter pronúncia sobre esses assuntos. Cabendo, em contrapartida à Administração o dever de apreciação, decisão e informação dessa decisão.

2. Uma concepção relacional particulares/Administração

São numerosas as disposições legais de onde emerge esta contemporânea concepção: o nº 3 do artº 212º CRP e o assumir, neste caso litigiosamente, “das relações jurídicas administrativas e fiscais”; o artº 266º, nº1, CRP e o respeito, pela Administração, dos “direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (ver também o artº4º do CPA); o direito que assiste aos particulares na construção das decisões da Administração; o direito à informação. Enfim, todo o cidadão é, perante a Administração, um sujeito jurídico de pleno direito, mais ainda também um seu parceiro que, numa relação jurídica procedimental tem direito a uma decisão e nunca a uma “discricionariedade do silêncio” ou ao “silêncio incumprimento” que corresponderá à violação do dever de decidir, a uma situação de ilegalidade que poderá encontrar fundamento numa instrumentalização em função da política legislativa, contraposto ao direito a uma decisão.

3. Busca de celeridade

Este parece ser um dos objectivos do CPTA e da acção de condenação à prática de acto devido - conseguir concentrar num só processo a apreciação global de impugnação contenciosa de uma relação jurídica administrativa controvertida que se baseie na recusa ou na inércia, sem necessidade de impugnação administrativa.

4. O dever de decidir

Este dever admite diversos graus

I) Impossível a decisão: situações de impossibilidade de apreciação do objecto que afastam o dever de decidir e extinguem o procedimento. São disso exemplo a falta de pressupostos procedimentais apontados no artº 83º CPA: incompetência do órgão administrativo, caducidade do direito que se pretende exercer, ilegitimidade do requerente, extemporaneidade do pedido.

II) Discricionariedade de planeamento: situações em que, apesar de estarem reunidos todos os pressupostos procedimentais, a Administração tem liberdade de escolher o momento em que vai decidir, há uma “escolha de oportunidade” pois nem todos os momentos correspondem ao momento oportuno, nem todos levam a uma decisão conformativa e de mérito. P. ex. quando município não se pronúncia sobre determinado pedido de licença enquanto não tem aprovado plano de pormenor.

III) Dever de decidir: quando estão reunidos todos os pressupostos a Administração deve comunicar a decisão de deferimento ou indeferimento, seja essa decisão mais ou menos vinculada, com maior ou menor margem de discricionariedade. Quanto mais vinculado for o poder mais possibilidades há de obtenção de uma decisão de acordo com a pretensão. A decisão recai sempre sobre o objecto da pretensão. Como já vimos, tanto a omissão/inércia administrativa (67º, nº 1 a) do CPTA), como a recusa de apreciação (67º, nº 1 c) do CPTA) e ainda a recusa de prática do acto devido (67º, nº 1 b) do CPTA) levam à procedência da acção nos termos do artº 66º e ss. CPTA. A acção assenta na verificação dos defeitos da actuação da Administração.

Acto administrativo vs. pretensão do interessado

Com a acção de condenação à prática de acto devido o objecto do processo deixa de ser o acto administrativo passando a ser a pretensão do interessado - artº 66º, nº2 do CPTA.

Os actos administrativos de recusa são, tal como a inércia, pressupostos processuais (artº 67º, nº1 do CPTA). Assim, o processo corre os seus termos visando não a possível anulação do acto mas antes a condenação à prática do acto pretendido pelo interessado. O mesmo processo, ainda mais peremptoriamente se justifica nos casos de inércia em que nem sequer um possível acto susceptível de anulação existe, não há caso decidido, não há consolidação com a inércia.

O incumprimento do dever de decidir equivale a uma abdicação da Administração da originalidade da autotutela, colocando a decisão nas mãos de um tribunal que a impõe imperativamente e em primeiro lugar (artº 205º, nº2 da CRP e artº 71º do CPTA).

O acto administrativo negativo, que constitui pressuposto processual, acaba eliminado da ordem jurídica por força da decisão condenatória em acção de condenação à prática de acto devido (artº 66º, nº2 in fine do CPTA), não por anulação pois não é o acto o objecto do processo.

O fim do indeferimento tácito

1. Como acto administrativo

O indeferimento tácito (ou acto administrativo tácito negativo) figura no artº 109º, nº 1 do CPA e considera-se revogado por força do disposto nos artos 66º, nº 1 e 67º, nº1 a) do CPTA, uma vez que permitem a utilização de uma acção de condenação por omissão da prática de um acto administrativo devido e, mais ainda, de acordo com os artos 66º, nº2 e 71º, nº1 do CPTA, permitem que o tribunal se pronuncie sobre a pretensão do particular impondo a prática do acto devido.

Por isso, não sendo praticado o acto devido, no lugar de pedido de impugnação de acto deverá ser pedida a condenação à sua prática. Nesse sentido aponta o artº 51º, nº4 do CPTA que estabelece o dever do tribunal convidar o autor a substituir a petição formulando pedido a essa prática conforme previsto nos artos 46º, nº2 b) e 66º e ss. do CPTA, e não a sua anulação. Trata-se do desmoronar da anterior formulação que considerava a falta de decisão dentro do prazo como acto de indeferimento (tácito, presumido) passível de impugnação.

2. Do recurso hierárquico

Por força dos artos 175º, nº 3, 176º, nº3 e 177º, nº5, todos do CPA, tanto o recurso hierárquico, seja ele necessário ou facultativo, como o recurso hierárquico impróprio e ainda o recurso tutelar, estavam sujeitos a indeferimento tácito por falta de decisão dentro do prazo.

Com o artº 59º, nº5 do CPTA extingue-se a necessidade de prévia impugnação administrativa (recurso hierárquico necessário) para que se proceda à impugnação contenciosa, isto para qualquer acto com eficácia externa e lesivo de direitos ou interesses legalmente protegidos (artº 51º, nº1 do CPTA) e mesmo que já decorra a impugnação administrativa (onde se salienta o recurso hierárquico).

A impugnação administrativa suspende o prazo mas não impede a impugnação contenciosa, mesmo no decurso daquela (artº 51º, nº4 do CPTA).

Contudo, como o recurso hierárquico necessário suspende a eficácia do acto recorrido (artº 170º, nº 1 do CPA) está neste caso afastada a necessidade de imediato recurso contencioso pois a lesividade de direitos ou interesses legalmente protegidos eventualmente provocada por esse acto se encontra afastada conforme exige o nº4 do artº 268º da lei fundamental.

Diferente é a situação no tocante à inércia. Não sendo um acto administrativo, e correspondendo sempre a uma situação lesiva do particular, como se acautela o respeito dos direitos ou interesses legalmente protegidos devido pelo artº 268º, nº4 CRP no decurso do prazo estabelecido no artº 69º, nº1 CPTA até à possibilidade de instauração do processo de condenação à prática de um acto administrativo devido? A solução parece estar na solicitação de adopção, perante o tribunal administrativo, de medida provisória prevista no artº 112º CPTA (Providências cautelares) nos termos do artº 123º, nº1 a) do CPTA. Enquanto decorrer o prazo para uma decisão (expressa) negativa ou a consideração de omissão de qualquer resposta dentro do prazo (inércia) e antes da possibilidade de instauração da acção contenciosa (69º, nº1 do CPTA), estão os interesses do particular protegidos pela providência cautelar. Se a inércia é determinada em relação a um acto secundário, que constitui reacção a um primeiro acto negativo, só após o decurso do prazo para decisão quanto a este segundo acto pode ser instaurada a acção contenciosa e, uma vez que só se deve considerar a existência do acto primário (só esse é acto, não a inércia), só em relação a este, como acto final e eficaz, deverá ser utilizado o meio contencioso uma vez que se inicia o prazo para a utilização desse meio, por recurso analógico ao disposto no artº 59º, nº4 CPTA.

A continuidade do deferimento tácito

Situações há em que se considera que o acto já existe, já está a produzir na esfera jurídica do interessado os efeitos que este pretende, não tendo dependido esses efeitos da prática ou emissão de qualquer acto devido pela Administração.

São as situações expressamente previstas no artº 108º do CPA bem como nalguma legislação especial, que consubstanciam uma solução excepcional, o deferimento tácito, que ocorre por decurso do prazo estipulado para que o órgão administrativo decida quanto a um pedido de autorização ou aprovação apresentado por um particular.

Considerado como acto administrativo, neste caso favorável às pretensões do particular, revela-se como uma solução que garante a satisfação dos direitos e interesses legalmente protegidos do particular. Solução que deste modo afasta o objecto de uma acção de condenação à prática de acto devido, sendo mais célere e mais completa do que tal acção.

O deferimento tácito, como acto administrativo que é, não deixa de estar sujeito a processo especial de impugnação de acto administrativo que seja deduzido por terceiros afectados por esse acto, conforme prevê o artº 59º, nº3 c) do CPTA.

Os requerimentos repetitivos

O artº 9º, nº2 do CPA afasta o dever de decidir quando, há menos de 2 anos, o mesmo órgão receba a formulação de igual pedido, apresentado pelo mesmo particular, com os mesmos fundamentos.

No entanto, passados que sejam dois anos ou mais sobre a decisão de recusa (de apreciação ou por indeferimento) quanto ao primeiro pedido ou, quando por inércia, não tenha sido tomada decisão dentro do prazo legal, mantém-se o dever de apreciação e de decisão da Administração face à apresentação de novo pedido igual ao primeiro.

O incumprimento de tal dever ou uma segunda pronúncia negativa, acarretam ambos a possibilidade de prossecução de acção de condenação à prática de acto devido com fundamento num dos três pressupostos definidos no nº1 do artº 67º do CPTA.

Nota Final

Para quem quiser aceder ao texto original clique aqui

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