quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Processos Urgentes - Trabalho realizado por Ana Moura
Processo nº XXXXXX/10 – Pleno da 1ª Secção
Acordam, em conferência, no Pleno da 1.ª Secção do Tribunal Administrativo:
Trabalho - Luis Epifanio
Introdução – Parte Teórica
Para iniciar um trabalho sobre Contencioso Administrativo, julgo que nada melhor que começar por apresentar uma breve definição da ciência que lhe está na base, ou seja, o Direito Administrativo. Podemos referir o Direito Administrativo, como o conjunto de princípios jurídicos que regem a organização e o exercício da actividade administrativa estatal, as suas entidades, órgãos e agentes públicos, com o objectivo de satisfazer as necessidades da colectividade, sob a observância dos interesses públicos e em direcção aos fins desejados pelo Estado. Ainda, segundo a opinião do Professor Freitas do Amaral, Direito Administrativo é “o ramo de direito público, constituído pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização e o funcionamento da Administração Pública, bem como as relações por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito, no exercício da actividade administrativa de gestão pública”.
O Direito Administrativo é uma grande evolução, na medida em que existe porque o poder se aceitou submeter à lei em benefício dos cidadãos. O poder submete-se ao Direito, mas não a qualquer um, submete-se a um Direito que lhe deixa em todo o caso uma certa margem de manobra para que o interesse público possa ser prosseguido da melhor forma. O Direito Administrativo não representa apenas um instrumento de liberalismo frente ao poder, é o garante de uma acção administrativa eficaz. O Direito Administrativo, noutras palavras, é simultaneamente um meio de afirmação da vontade do poder, ou seja, é um meio de protecção do cidadão contra o Estado.
O ramo de Direito em estudo procura, genericamente, a permanente harmonização das exigências da acção administrativa, na prossecução dos interesses gerais, com as exigências da garantia dos particulares, na defesa dos seus direitos e interesses legítimos.
O Direito Administrativo é um ramo de direito bastante jovem. Nasceu, não da melhor forma, é verdade, mas ainda assim, foi a forma que permitiu uma evolução tal, para que chegássemos ao ponto actual. Ele nasce no seio da Revolução Francesa, sendo ainda o produto das reformas profundas que, a seguir à primeira fase revolucionária, foram introduzidas por Napoleão Bonaparte. Também os tribunais tiveram um papel importantíssimo, no desenvolvimento do Direito Administrativo, “como uma glândula segrega a sua hormona”, o Direito Administrativo foi criado na sequência do famigerado caso “Arrêt Blanco”. Com este caso, o Tribunal de Conflitos Francês achou que seria necessário criar um “direito especial” para a Administração, que tomasse em consideração o seu “estatuto de privilégio”.
Importado de França, o Direito Administrativo aparece em Portugal, a partir das reformas de Mousinho da Silveira de 1832.
Nos primórdios, os administrativistas limitavam-se a tecer comentários soltos às leis administrativas mais conhecidas através do chamado “método exegético”.
Somente no término do séc. XIX, se inicia a construção científica do Direito Administrativo, a qual se fica a dever, sensivelmente na mesma altura, a três nomes que podem ser considerados como verdadeiros pais fundadores da moderna ciência do Direito Administrativo Europeu: o francês Laferrière, o alemão Otto Mayer e o italiano Orlando.
O rigor científico passa a ser traço característico desta disciplina; a confusão metodológica dá lugar à construção dogmática apurada de uma teoria geral do Direito Administrativo, que não mais foi posta de parte e continua a ser aperfeiçoada e desenvolvida diariamente.
Como já foi referido, entre nós a doutrina administrativa começou por ser, nos seus primórdios, importada de França, através da tradução pura e simples de certas obras administrativas francesas. No entanto, a partir de meados do séc. XIX, o nosso Direito Administrativo entrou numa fase diferente, fase esta caracterizada pela estabilidade, racionalidade e carácter científico.
Relativamente às fases da evolução, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, podemos resumi-las, em três fases distintas.
A fase do “pecado original”, marcada pelo Estado Liberal e pelo administrador-juiz.
A fase do “baptismo”, em que passa a haver jurisdicionalização do Contencioso Administrativo, com a chegada do Estado Social.
E, por fim, a fase da “confirmação”, em que passa a haver tutela jurisdicional plena e efectiva dos particulares, face à Administração.
Em Portugal ilustres nomes contribuíram para a evolução científica do Direito Administrativo, notabilizando-se, sobretudo, um mestre da Universidade de Coimbra, depois Professor em Lisboa: João de Magalhães Collaço. Cabendo, porém, ao Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, Marcello Caetano, o mérito de, pela primeira vez em Portugal, ter publicado um estudo completo da parte geral do Direito Administrativo.
Feitas que estão estas considerações iniciais, julgo ser pertinente fazer uma análise, ainda que breve, daquilo que são os sistemas administrativos existentes. Partindo do princípio que sistema administrativo é um modo jurídico típico de organização, funcionamento e controlo da Administração Pública. Constatamos a existência de dois grandes tipos de sistemas administrativos, designadamente: o sistema de administração judiciária ou inglês e o sistema de administração executiva ou francês.
Posto isto, passamos a uma breve distinção/comparação.
O sistema inglês caracteriza-se pela separação de poderes, descentralização, lenta formação ao longo dos séculos, papel destacado do costume e ainda, pela vinculação à regra do precedente e a existência de uma grande independência dos juízes e forte prestígio do poder judicial.
O sistema francês é marcado pela separação de poderes, centralização, sujeição da Administração aos tribunais administrativos e ainda pelas garantias dos particulares.
Em termos de organização administrativa, podemos dizer que o sistema inglês é um sistema descentralizado, ao passo que o francês é centralizado.
O sistema de tipo Britânico entrega o controlo jurisdicional da administração aos Tribunais Comuns e regula a sua administração pelo Direito Comum, ou Direito Privado, sendo que o de tipo Francês o entrega aos Tribunais Administrativos e aplica à sua administração o Direito Administrativo que é Direito Público. Em Inglaterra há unidade de jurisdição e em França, dualidade de Jurisdições.
O sistema inglês faz depender a execução das decisões administrativas da sentença do Tribunal, ao passo que o sistema francês atribui autoridade própria a essas decisões e prescinde da intervenção prévia de qualquer Tribunal. Ainda relativamente às garantias jurídicas dos administrados, a Inglaterra atribui aos Tribunais Comuns amplos poderes de injunção face à Administração, que lhes fica subordinada como a generalidade dos cidadãos, enquanto a França só permite aos Tribunais Administrativos que anulem as decisões ilegais das autoridades ou as condenem ao pagamento de indemnizações, sendo a Administração independente do poder judicial.
Postas de parte, estas notas introdutórias sobre a matéria, pretendo agora passar à análise de casos concretos, pois julgo que, caso as pessoas conhecessem melhor os direitos que a lei lhes concede, poderiam viver uma vida mais segura, mais estável e mais interventiva na cena política do quotidiano.
Parte prática
Caso 1 (anónimo):
- O Estado expropriou uma propriedade de um particular, este sem qualquer conhecimento/contactos no mundo jurídico, pagando um preço irrisório, com perdas visíveis para a família. Ao contrário, num outro local, há mais de 20 anos que o Estado necessitava fazer uma estrada, somente há pouco o fez e, ainda assim, não, segundo o trajecto pretendido. Como é óbvio, este caso esteve bastantes anos em tribunal.
Ora, é claro que não pretendo questionar a segura pertinência que foi este segundo caso estar em tribunal todos estes anos. O que questiono é que não tenha ocorrido o mesmo, na primeira situação.
Pois bem, se eu fosse jurista…
Começaria por aconselhar a família a analisar o montante “oferecido” pela propriedade e o valor real da mesma. Depois, analisaria as razões que levaram o Estado a avançar para aquela expropriação.
Depois de o fazer e constatar, que, somente, devido a uma futura construção de uma superfície comercial, o Estado decidiu fazer a estrada na propriedade e referida e não, na outra, como anteriormente estava delineado, julgo que não teria dúvidas em avançar com o caso para tribunal, defendendo a família em causa.
A competência, julgo, é dos Tribunais Administrativos, nos termos do art. 4.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Assim, primeiramente, avançaria, nos termos do art. 112.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), com uma providência cautelar conservatória. A legitimidade para a mesma, julgo detê-la, o que passarei a demonstrar em seguida.
Nos termos do art. 9.º n.º 1 CPTA, (e falando em nome da família), considero-me, neste caso parte legítima, uma vez que faço parte da relação material controvertida, na medida em que sofro efeito danoso do acto ilícito. O acto ilícito aqui, será a expropriação, uma vez que a mesma, de acordo com a Constituição da República Portuguesa (CRP), só é possível, nos termos do art. 62.º n.º 2. Ora, neste caso, aparentemente, a propriedade em causa só vai ser expropriada, por causa da superfície comercial e não, porque, a priori, o Estado ali quisesse fazer passar a referida estrada.
Não questiono, de facto a utilidade da via de comunicação, questiono sim, o motivo que a levou a passar no local que foi.
Posto isto, nos termos do art. 112.º CPTA, uma vez que existe legitimidade para o processo comum, haverá legitimidade para propor a providência cautelar. Pediria ainda, como é óbvio, a impugnação do acto administrativo de expropriação, nos termos do art. 46.º n.º 2 a), bem como uma indemnização pelos transtornos causados, nos termos do art. 47.º n.º 1 CPTA.
Pretenderia pedir ainda, nos termos do art. 4.º, 7.º, 8.º 10.º e 9.º n.º 1, todos do Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos (CPA), solicitar informações mais concretas à Administração, sobre o caso.
Com tudo isto, somente esperaria que a Administração Pública me explicitasse melhor o porquê de necessitar de expropriar a propriedade em questão e, caso, por fim constatasse que a mesma era, realmente, pelas melhores razões, então aí sim, levantaria a providência cautelar, mas não, sem antes, deixar bem claro que a propriedade em causa contem um grande valor sentimental para toda a família, para além, é claro do valor de mercado que também é grande na freguesia.
Em suma, não pretendo ser um entrave ao desenvolvimento. Julgo sim que, com os conhecimentos certos, na hora certa, este é um caso que poderia ter sido mais bem analisado e as pessoas menos lesadas. Poderia ter havido um maior diálogo com os particulares, em vez da “cultura do medo” que muitas vezes é cultivada em relação a questões em que intervenha o Estado.
Caso 2 -
“Nós sabemos o que estamos a fazer”, é a afirmação dos promotores de vendas na praia d´el rey.
Segundo os mesmos, “O crescimento da Praia D'El Rey tem uma base sólida; ao longo dos últimos 10 anos construímos cerca de 1000 propriedades, um Hotel Marriott de 5 estrelas, um centro de ténis, e um campo de golfe junto da falésia e que foi recentemente votado como o melhor de Portugal.”
Pois bem, realmente pode até ser o melhor do país e com a melhor vista sobre o Oceano. Simplesmente não me parece que, qualquer cidadão a pudesse construir. E, não estou a falar em termos de possibilidades monetárias para adquirir material e mão-de-obra.
Desta forma, se eu fosse jurista…
Aquando do levantamento da possibilidade de construção do dito aldeamento, teria, avançado com uma providência cautelar, nos termos do art. 112.º n.º 2, alínea a), para suspender a eficácia do acto administrativo que autorizou a construção do complexo turístico.
Pediria ainda, como é óbvio, a impugnação do acto administrativo de autorização, nos termos do art. 46.º n.º 2 a), bem como uma indemnização pelos transtornos causados, nos termos do art. 47.º n.º 1 CPTA. A legitimidade para o fazer julgo, que existe, e advém, do art. 9.º n.º 2 CPTA, uma vez que cabe a todos velar pelo bom governo do nosso país.
Em suma, não pretendo uma vez mais colocar um entrave ao desenvolvimento económico, muito menos dizer que o que está feito é feio ou foi mal executado. O que pretendo denunciar é, sim, a desigualdade e ambiguidade de decisões. Pois, muitas vezes não é possível um particular construir em zonas aparentemente aptas para a construção e, somente por mera desactualização dos dados da administração, não é possível construir. E, neste caso concreto, parece-me escandaloso que se tenha autorizado a construção em zona protegida (ainda que tal possa não aparecer no papel). As construções foram feitas na falésia, em pleno cordão dunar, estradas abertas e zonas desmatadas. Por tudo isto, julgo que deveria ter havido uma análise mais profunda do caso.
Caso 3 –
Quercus apresenta queixa por abate ilegal de sobreiros em Almeirim
A associação ambientalista Quercus denunciou o “abate ilegal” de sobreiros na Herdade dos Gagos, no concelho de Almeirim, na zona de replantação compensatória para a construção do Estabelecimento Prisional do Vale do Tejo. Segundo plavras dos mesmos, “… já oficiámos tanto a Direcção-Geral de Florestas de Lisboa e Vale do Tejo, em Santarém, e alertámos o IFADAP [Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e das Pescas], para saber o que se passa aqui, se têm conhecimento que o investimento está a ser destruído”, disse o Presidente da Direcção do Núcleo Regional do Ribatejo e Estremadura da Quercus.
Durante uma visita ao local, Domingos Patacho realçou que, além destas entidades, também foi alertado o Serviço Especial de Protecção da Natureza (SEPNA) da GNR, enquanto a associação ambientalista afirma, em comunicado, que “está a avaliar recorrer à via judicial”.
Segundo Domingos Patacho, em causa está o abate de “algumas dezenas de sobreiros já com alguma dimensão; mas, contando com os mais pequenos, da sementeira, [o abate] será na ordem das centenas”.
Se eu fosse jurista…
Nos termos da acção popular, 9.º n.º 2 CPTA, pretenderia colocar um ponto final nesta situação, anulando o acto de autorização. Recorreria ao art. 46.º n.º 2 a) CPTA. Julgo que a todos cabe cuidar do que é nosso e a todos é possível fazer uso dos méis legais ao seu dispor, para impedir que a lei seja incumprida.
Caso 4 -
Outro caso do meu conhecimento pessoal, prende-se também com o abate de sobreiros e, neste caso, com a necessidade de actuar, para evitar que tal continue.
Perto de três dezenas de sobreiros, ao que tudo indica saudáveis, foram abatidos ilegalmente na Mata do Duque, em Santo Estêvão, Benavente, numa zona onde está a ser construído um condomínio de luxo. A GNR já actuou, após uma queixa da Quercus.
Foi por causa de uma denúncia de pessoas que moram nas proximidades que a associação ambientalista se deslocou ao local, confirmando que tinham sido cortadas muitas dezenas de árvores aparentemente saudáveis, explicou Domingos Patacho, um dos responsáveis da Quercus.
De acordo com o ambientalista, a sociedade imobiliária que está a construir o empreendimento de luxo tinha autorização para abater árvores, mas apenas as que se encontravam secas e doentes. Contudo, a Quercus assegura que eram visíveis vestígios de ramos e folhagem verde na Mata do Duque, onde Cristiano Ronaldo vai construir uma mansão de 6,1 milhões de euros com a assinatura do arquitecto Souto Moura.
Além dos sobreiros saudáveis, a Quercus testemunhou a presença de um tractor com atrelado, carregado de troncos de árvores verdes não cintadas, em lotes do empreendimento imobiliário, uma situação que também denunciou na sua página de Internet.
O Serviço de Protecção da Natureza e Ambiente da GNR levantou um auto de contra-ordenação pelo abate ilegal de 27 sobreiros em bom estado vegetativo, apesar da sociedade imobiliária apenas estar autorizada a cortar sobreiros secos.
A Quercus argumenta que “o Estado deve regular comércio de madeira e biomassa, uma vez que tem detectado outras situações idênticas, que decorrem de abates não autorizados de espécies protegidas, cuja madeira entra no circuito comercial de venda de lenha, sem qualquer controlo”.
Domingos Patacho defende que a Autoridade Florestal Nacional deveria também actuar neste caso, através da instrução de um processo de contra-ordenação para que o promotor imobiliário seja responsabilizado pelo abate de árvores saudáveis e também por uma questão de salvaguarda desta e de outras áreas de montado.
Se eu fosse jurista…
Ao tomar conhecimento de que este abate tinha tido início, teria tomado as devidas e legais providências. Relativamente ao Estado, em concreto, este somente autorizou o abate de árvores secas e doentes, não parecendo o caso das árvores abatidas neste empreendimento. Assim, não creio ser o Estado o culpado por esta situação, no entanto, julgo que ainda assim lhe cabe actuar. A minha afirmação justifica-se, recorrendo ao art. 109.º n.º 1 CPTA, uma vez que, imediatamente após tomar conhecimento de que os sobreiros saudáveis estavam a ser abatidos, pretendia que o Estado actuasse, por forma não só a punir o seu infractor, como também a impedir o prosseguimento imediato da acção ilegal, defendendo assim um património que é de todos os lusitanos.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Perante as dificuldades interpretativas deste normativo, há quem elabore um re-tratamento hermenêutico e valorativo da sua interpretação, nos seguintes termos:
i) a postura subjectivista na interpretação do art. 55º/1-a) não deve provocar uma subalternização do princípio da legalidade;
ii) adopte-se uma ou outra perspectiva, o direito de acesso à justiça administrativa e o princípio da tutela jurisdicional efectiva não devem ser postos em causa.
domingo, 12 de dezembro de 2010
A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo
O modelo predominantemente subjectivista que se pode designar “modelo alemão” surge associado à ideia de uma “ protecção judicial plena e efectiva” dos administrados (Tutela de direitos e de posições jurídicas substantivas individualizadas dos particulares), procurando uma densificação substancial e procedimental da fiscalização judicial da actividade administrativa, designadamente no que respeita à limitação dos poderes discricionários.
Por seu lado, num regime processual de natureza fundamentalmente objectivista vê-se, em primeira linha, a defesa da legalidade e do interesse público, considerando-se o recurso de anulação como “um processo feito a um acto”, destinado em primeira linha a fiscalizar a legalidade do exercício autoritário de poderes administrativos, em que os recorrentes particulares desempenham a função de auxiliares da legalidade, porque (desde que ) interessados no resultado.
Ora, considerando a Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( ETAF) – alterado pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, bem como a Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e que entraram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, constata-se que a nova Reforma legal prevê um sentido significativamente subjectivista contudo, a manutenção ou introdução de alguns aspectos objectivistas é também visível.
Assim, entende-se que é o quadro constitucional da justiça administrativa que vem estabelecer garantias dos administrados com a intenção de assegurar uma protecção plena perante a administração dos seus interesses legalmente protegidos.
No actual regime, o âmbito de delimitação da jurisdição administrativa, em termos positivos e negativos encontra-se regulado no ETAF nos seus artigos 1º e 4º, que atribui aos tribunais administrativos, nos termos constitucionais, a competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, reflectindo-se tal competência numa ampliação do âmbito tradicional.
Neste contexto, assistiu-se a um aperfeiçoamento das garantias das posições jurídicas substantivas dos cidadãos sendo o motor dessa evolução a norma constitucional do art. 268º da Constituição da República Portuguesa ( C. R. P.).
Também o CPTA no art. 2º, nº1 e nº2 ( art. 2 do C.P.C.) consagrou o princípio da tutela jurisdicional efectiva (a cada direito corresponde uma acção), incluindo a tutela cautelar e, portanto, abandonou-se a tipicidade dos pedidos, elencando-se os diversos conteúdos da pretensões possíveis junto dos tribunais e os correspondentes poderes do juiz.
Destas pretensões destacam-se as que não eram anteriormente admitidas: condenação à prática de acto administrativo devido, a condenação à não emissão de actos administrativos, a intimação para adopção ou abstenção de comportamentos administrativos e a declaração da ilegalidade por omissão de regulamentos, bem como a resolução de litígios entre privados e entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública.
Criaram-se duas formas processuais ( meios processuais), a acção administrativa comum( art. 37º do CPTA) e a acção administrativa especial ( art. 46º do CPTA), sendo a acção mais frequente do contencioso administrativo a acção especial visto que sempre que se verifique cumulação de pedidos e um deles siga a forma de processo especial será utilizada a forma de acção especial ( art. 5º do CPTA).
Admite-se com grande amplitude a livre cumulação de pedidos em função da mesma relação jurídica ou da mesma matéria de facto ou de direito (art. 4º, nº 2 e art. 47º do CPTA).
No que respeita à tramitação das acções administrativas especiais, estabeleceram-se regras uniformes ( art. 35º, nº2 e 78º e ss., do CPTA), embora com particularidades relativas à impugnação de actos( art. 59 e ss.,), condenação à prática de actos devidos ( artigos 66º e ss.) e aos processos relativos a normas ( artigos 72º e ss.), para além de se estabelecerem processos principais urgentes, em que se reúnem impugnações e intimações urgentes( artigos 97º e ss.).
Consagra-se o princípio da igualdade de armas entre o recorrente e a Administração no sentido da consagração de um verdadeiro “processo de partes” .
Alarga-se substancialmente a protecção cautelar dos administrados, que abrange quaisquer providências, “ antecipatórias ou conservatórias”, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença( art. 112º e ss. do CPTA).
Nesta conformidade, a Reforma estabeleceu um modelo subjectivista, consagrando o processo administrativo como um processo de partes e alargando os poderes de cognição e de decisão do juiz perante a administração, no entanto, detectam-se os momentos objectivistas do regime, no que respeita à legitimidade processual activa, designadamente para a impugnação de actos administrativos, seja nos significativos poderes que continuam a reconhecer-se ao M.P. como auxiliar da justiça, em defesa da legalidade, sobretudo no que respeita à impugnação de normas, seja ainda em outros aspectos específicos, como o conhecimento oficioso pelo juiz das ilegalidades do acto administrativo impugnado( art. 95º, nº 2 do CPTA).
Não perdendo de vista o tema em análise, a intervenção do Ministério Público na jurisdição administrativa e fiscal está subordinada ao estabelecido no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e as atribuições que exerce não são mais do que concretizações e especialidades dessa modelação geral de base constitucional, bem como da densificação que da mesma é feita nos artigos 1.º a 6.º do Estatuto do Ministério Público (EMP).
Na realidade, tal como sucede no processo civil, também no processo contencioso administrativo, antes como depois da reforma, são tais poderes exercidos intervindo quer a título principal – quando actua uma legitimidade própria para a defesa de bens e valores colocados à sua tutela ou quando representa o autor ou o réu – quer como parte acessória – quando exerce funções de defesa da independência e da legalidade na função jurisdicional e/ou de assistência.
O novo modelo configura um equilibrio entre, por um lado, o recorte constitucional e estatutário dos poderes de iniciativa e intervenção processuais do Ministério Público, e, por outro, do respectivo enquadramento num sistema de justiça administrativa que se apresenta hoje, no plano constitucional, marcadamente subjectivista – desde logo por ser esta a dimensão que surge constitucionalmente configurada como um imperativo(1).
De facto, a dimensão subjectivista da justiça administrativa vertida no artigo 268.º da C.R.P., foi a razão invocada para a reconfiguração dos poderes processuais do Ministério Público.
Na verdade, o artigo 85.º do CPTA, veio a alterar profundamente o modelo tradicional de intervenção do Ministério Público nos processos em que não figure como parte, e fê-lo quanto ao conteúdo, ao momento e ao modo de intervenção(2).
Tão profunda alteração foi ainda facilitada pela polémica gerada pela jurisprudência do Tribunal europeu dos Direitos do Homem no acordão Lobo Machado, em que se concluiu constituir violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem a emissão de parecer escrito pelo M.P. sem que concomitantemente fosse assegurado o direito de resposta por parte do demandante; também, pela jurisprudência entretanto produzida pelo Tribunal Constitucional no acordão n.º 345/99, que julgou inconstitucional a norma do artigo 15.º do LPTA que permitia a intervenção do M.P. nas sessões de julgamento do STA, com fundamento na violação do processo equitativo a que se refere o artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.(3).
Seja qual for o entendimento preconizado sobre os poderes processuais do Ministério Público, nesta como noutras áreas do direito, a reforma operada não podia, obviamente, esvaziar a função de representação em juízo do Estado, por tal ir contra a consagração constitucional dessa competência.
Assim, o CPTA acolheu, por imposição dos artigos 219.º da C.R.P. e artigos 1.º a 6.º do EMP, uma solução de continuidade face ao regime anterior, por continuar a reconhecer-se um papel processual relevante ao M.P. para fiscalização da legalidade (art. 51º do ETAF)(4), sobretudo ao poder geral de iniciativa, mas também, embora limitado à defesa de valores comunitários, ao poder de dar parecer sobre o mérito e o de invocação de novos vícios, apesar de se lhe terem retirado alguns dos seus poderes processuais, limitando a intervenção na fase instrutória e suprimindo a vista final e a participação da sessão de julgamento (artigos 58º, nº2, 62º e 73º, nºs 3 a 5, 77º, 85º, 104º, nº2, 146º, 152º, e 155º, todos do CPTA).
É o exercício da acção pública que justifica o estatuto processual do Ministério Público no processo contencioso administrativo e ser a acção pública para defesa da legalidade objectiva a dimensão mais carismática da intervenção do Ministério Público nesta área funcional.
No âmbito das acções administrativas especiais da iniciativa dos particulares (em que o Ministério Público não é parte formal) o CPTA reequacionou a intervenção processual do Ministério Público na acção impugnatória quanto ao tipo de intervenção
( por requerimento e não por vista), quanto ao conteúdo dessa intervenção (artigo 85.º, n.º(s) 2 a 4 e quanto ao momento em que deverá ser concretizada ( n.º 5).
Ao Ministério Público ( M.P.) e aos titulares de interesse directo na anulação do acto, mantém-se um conceito muito vasto de legitimidade para a impugnação de actos, e até se alarga a pessoas e aos órgãos administrativos, bem como, no âmbito da acção popular, a qualquer cidadão e a titulares de interesses difusos, incluindo as autarquias (artigos 55º, n.º 1, alínea a), 9º, nº 2 e 40º, todos do CPTA).
Pode-se, pois, concluir que o Ministério Público continua a deter no novo contencioso importantes poderes de iniciativa e intervenção processuais para defesa da legalidade, do interesse público e de bens comunitários ou valores socialmente relevantes, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
(1)Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, comentário ao Código de Processo nos Tribunais administrativos, Almedina, 2005, p. 26;
(2)Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, comentário..., p. 427;
(3)Sobre a razoabilidade da opcão legislativa de suprimir a intervenção do M.P. nas sessões do STA e de emitir parecer final sobre a decisão a proferir, previstos nos artigos 15.º, 53.º e 72.º, n.º 2, da LPTA, são importantes os argumentos divergentes de Sérvulo Correia, “ O recurso contencioso no projecto de reforma: tópicos esparsos”, in CJA, n.º 20, p. 15-16.
(4)Consagra que nos tibunais administrativos e Fiscais incumbe ao Ministério Público representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei lhe confere.
João Miguel Gonçalves Domingos
Aluno n.º 15584